domingo, 4 de abril de 2010

hominidae – relato de performance

Na caótica turbulência da cidade, há espaços para novas paisagens.

Numa árvore, o tronco tramado em fios brancos, convida o olhar a uma espiral que ascende à copa. Sobre ela, um homem.

Aos que acompanham sua ação, percebem que pouco se move. Ocasionalmente transita de um nicho a outro da árvore. Às vezes é encontrado de cabeça para baixo, amarrado ao tronco pela cintura.

Ao longo do dia, numa permanência de cerca de dez horas, não toca o solo, se alimenta de frutas, ouve música em um ipod e lê livros; o último uma compilação de um curso dado por Merleau-Ponty , entitulado ‘a natureza’.

Normalmente não reage as tentativas de comunicação verbal dos transeuntes, e mediante tentativas persuasivas, olha o comunicante nos olhos e tapa a boca com uma das mãos.

O corpo na ação é permeado por um trabalho de respiração e ajuste de tonalidade muscular, procurando uma adaptação ao desconforto do substrato na temporalidade dilatada da ocupação.

A aparente simplicidade da ação, gera uma complexa rede de reações que revelam a natureza da provocação. A interpretação mais comumente anunciada é que se trata de um protesto. “Mas sobre o que?” “Porque o silêncio?” “O que faz este homem?” “Seria um trabalho de arte?”

Agressões verbais e ameças são frequentemente anunciada: “Desce!” “Vou subir e te derrubar daí.” “Será que consigo acertar uma pedra há cinqüenta metros?” “Isso na cidade não pode!” “Cuidado que você pode aparecer nas páginas criminais do jornal de amanhã!”

Um jornalista de um canal de TV aberta, após visitar o local e receber uma recusa em ter uma entrevista com o homem, que não falava com ninguém, fez um anuncio ao vivo, dizendo que as pessoas que ali estavam queriam linchar o homem, porque ele parecia Judas. Comentário esse que antecedeu independentemente ao de uma mulher que dizia que ele parecia Jesus Cristo.

Há também quem passe e estabelece empatia com a ação: “Nossa moço, que generoso”.

Nas projeções da experiência estética, nota-se o espectador desprevenido, ‘um público passante’ com reações que vão da indiferença a ameça, da contemplação a repulsa. A maioria dos que se manifestam verbalmente, sinalizam o desejo imanente de ‘vigiar e punir’ o transgressor, um grito pela normatização do comportamento social vigente. O que se quer é que o homem desça e que a paisagem volte a ser como antes, uma árvore para muitos “invisível” habitada por pombos, insetos e quem sabe alguns micos.

hominidae








fotos: thiago carvalho

performance realizada em Uberlândia-MG
edital: arte móvel urbana.

um estudo da obra 'a natureza'


este livro é uma transcrição de cursos dados por Merleau-Ponty no Collège de France, de 1957 a 1960, um ano antes de sua morte.
como referência primordial do projeto 'hominidae', algumas reflexões e citações serão postadas neste blog.

'a natureza' - Merleau-Ponty - incurso sobre o conceito - de Aristóteles a Whitehead

Falar de natureza é falar do inalcançável enquanto conceito, ou verdade. A ciência, a filosofia e o senso comum, tentam dar conta deste entendimento da existência. Esta permeabilidade inevitável de ser e estar, individuo e ambiente.

O que é natural? Somos natureza ou derivamos dela? Como percebê-la? Olhando uma paisagem bucólica? Observando o comportamento social dos animais ou dos humanos? Atravessando a rua de um grande centro urbano? Contrapondo aos artifícios? Revendo as ciências? Refletindo sobre as catástrofes? Ou sobre o “belo”?

Seguem citações da obra:

Há séculos a filosofia tenta alcançar e formalizar esse pensamento. Aristóteles dava aos corpos um destino qualitativo, finalidade. ‘A natureza dos corpos leves é subir’. Considera a idéia de destino, ligação, alma do mundo. Dois mil anos depois, vemos permanecer a idéia de finalidade imanente a natureza. Em Descartes e Newton porem, ela aparece sublimada em Deus. O elemento novo reside na idéia de infinito, devida à tradição judaico-cristã.

A Natureza desdobra-se em Naturante e Naturado. É em Deus que se refugia tudo o que podia ser interior á Natureza, ela perde seu interior; é a realização exterior de uma racionalidade que está em Deus. Finalidade e causalidade já não se distinguem e essa indistinção exprime-se na imagem da ‘máquina’.
A figura do mundo resulta automaticamente da ação de leis da matéria. A ciência cartesiana apresenta a natureza como um objeto exposto diante de nós.

Numa concepção humanista, encontramos em Kant a idéia de subjetividade como poder de ordenação, capacidade de dar leis, de estabelecer a idéia de um mundo ao qual possa referir-me através da minha própria duração. A natureza então vai aparecer como conjunto de todos os objetos dos sentidos. É um simples correlato da percepção.
Para que exista finalidade, é preciso que haja interioridade dos elementos uns em relação aos outros, e esta é uma razão formal para falar em finalidade.
É nos seres organizados vivos que se admite uma finalidade, pois um ser vivo é, simultaneamente, causa e efeito de si mesmo. E é do ponto de vista da finalidade que se percebem analogias nos seres vivos.

Segundo a causalidade, é lógico estabelecer analogias entre as espécies (semelhança). Talvez se deva traduzir isso por uma relação de parentesco (idéia de evolução das espécies), mas esta derivação parental jamais é uma explicação a partir das próprias espécies. Pode-se introduzir a idéia de uma ‘mãe originária’, de uma ‘imagem primordial, ‘modelo’ de todas as espécies, e que seria a espécie humana. E as relações de parentesco entre as espécies não são de forma alguma decisivas, dado que uma relação inversa seria igualmente possível.

A natureza nos apresenta uma finalidade dispersa. Ela é uma demonologia, repleta de forças supranaturais, das quais nenhuma é sobrenatural.

O verdadeiro país da finalidade é o homem interior: como ‘meta final’ da natureza, na medida em que ele não é natureza mas pura liberdade sem raízes.

O homem é antiphysis (liberdade) e arruína a natureza opondo-se a ela. Arruína-a ao fazê-la passar para uma outra ordem. É um pensamento humanista.

Em Bruschvicg há o desmembramento da idéia de Natureza, entendida como sistema de princípios e leis. Não cabe mais distinguir entre o que se nos aparece e a verdade total, e isso tanto fora de nós como dentro de nós. Não existe mais diferença entre o que sei de mim e o que sou. O universo é o objeto construído. A idéia de mundo um encontro de sincronismos. E o corpo é como “dados sensíveis, zoologicamente humanos”.

Seguindo o exorcismo de Deus à natureza, iniciada no humanismo, vemos no romantismo a natureza para além do mundo e aquém de Deus: não é nem mundo nem deus. É um produtor que não é todo poderoso, que não chega a terminar sua produção. Movimento de rotação que nada produz de definitivo. É ao mesmo tempo passiva e ativa, produto e produtividade, que tem sempre necessidade de produzir outra coisa.
Finalismo e causalismo são ambos rejeitados como artificialismos. Surge uma filosofia que confronta o artificialismo humano como o seu exterior, com a Natureza.

Em Schelling, os homens não passam de imagens, sonhos. Eles são como um homem cuja impotência é comparável àquela de um povo que, em seus esforços otimistas em direção àquilo que chama de civilização e de Luzes, chegou a tudo dissolver em pensamentos.
Para Schelling, tudo nasce a partir de nós, a Natureza é confiada a nossa percepção. Somos os pais de uma natureza de que somos filhos. É no homem que as coisas se tornam por si mesmas conscientes; mas a relação é recíproca: o homem é o vir a ser consciente das coisas.

A filosofia de Schelling procura restituir uma espécie de indivisão entre nós e a Natureza considerada como um organismo, indivisão condicionada pela indivisão sujeito-objeto. Apresenta o aparecimento do homem como uma espécie de recriação do mundo, como o advento de uma abertura. A natureza, por essa abertura, quando chega a criar o homem, vê-se ultrapassada em algo novo. Mas o inverso é igualmente verdadeiro. Não só a natureza dever tornar-se visão, mas é preciso que o homem se torne Natureza.

A filosofia de Bergson esta aparentada a de Schelling, na idéia de uma unidade como algo que é obvio e primordial. Ele admite na origem uma unidade das espécies, uma unidade do vegetal e do animal; unidade nativa, primordial. Uma paisagem está ali antes de nós e toda concepção realista se constrói por empréstimo a coisa percebida, ao universo da percepção. Apreendemos em nossa percepção, simultaneamente, um estado de consciência e uma realidade independente de nós. E em nossas percepções há duração, memória, numa descolagem em relação ao real. O organismo, nunca é idêntico ao seu passado, mas nunca está separado dele: ele se continua.
E quanto ao homem, não se pode dizer que ele seja a meta e o termo da evolução, nem que esteja ‘pré-formado no movimento evolutivo’; ele é o resultado de uma luta contingente que essa espécie sustentou com as outras espécies. Se o homem pode ser considerado um sucesso, é porque tem em si o não acabado e porque traz em si o elemento da criação.
“tudo se passa como se um ser indeciso e vago, ao qual se poderá dar o nome que se quiser, homem ou super-homem, tivesse procurado realizar-se e só o conseguiria abandonando pelo caminho uma parte de si mesmo”
A vida é o esforço da consciência para reencontrar-se na matéria.

Em Hursserl vê-se um desejo em compreender aquilo que antcede a ciência e a filosofia - o “mundo antes de toda tese” é o mundo percebido. Tem-se assim a idéia de Natureza como esfera das coisas puras, é a idéia do real, do em-si, essa natureza contem tudo, ela estende-se por si mesmo, sem limite: é isso que ele chama de universo. Não há corte decisivo entre pedra e o anima, entre o animal e o homem.
Eu organizo com meu corpo uma compreensão do mundo, e a relação com meu corpo não é a de um Eu puro, que teria sucessivamente dois objetos, o meu corpo e a coisa, mas habito o meu corpo e por ele habito as coisas. É simultaneamente objeto e sujeito.

Para a percepção originaria a Terra é indefinível em termos de corpos: ela é “o solo de nossa experiência”. Dela não se pode dizer que é finita ou infinita, não é objeto entre os objetos. A Terra não está móvel, nem em repouso, ela esta aquém. Os animais, são apenas variantes da humanidade. O que há de mais variante em nós, nós o pensamos a partir do que temos de mais singular.

Tudo o que se passa não se explica pela interioridade, nem pela exterioridade, mas por um acaso, que é a concordância entre esses dois dados, e que é assegurada pela Natureza.

Segundo as concepções modernas, o processo é um dado , num instante, não há nada, cada instante é apenas um núcleo destinado a agrupar os dados, assim não há natureza em um instante; toda realidade implica um avanço da natureza.

A tentativa de encontrar a natureza é uma tentativa interna.
Se percebemos no presente uma estrela que já não existe, estamos percebendo no presente o que, de fato é passado.
Whitehead nos convida a conceber relações não seriais entre o espaço e o tempo.;
Existe uma espécie de reciprocidade entre a natureza e eu enquanto ser senciente. Sou uma parte da natureza e funciono como qualquer evento da natureza: sou, por meu corpo, parte da natureza, e as partes da natureza admitem entre elas relações do mesmo tipo que as de meu corpo com a natureza.
O que percebo é, ao mesmo tempo, para mim e nas coisas. A percepção se faz a partir do interior da natureza. ‘Não existe um meio de deter a natureza a fim de olha-la.’ Ela é sempre nova a cada percepção mas nunca é sem passado. A natureza vai ser concebida como um desdobramento espaço-temporal.

A natureza esta sempre de passagem: somente a apreendemos em suas manifestações, sem que essas manifestações jamais a esgotem.
A natureza é memória do mundo; o que foi não pode deixar de ter sido, quer o saibamos ou não.
Se a vida é a instauração das bases da historia, tal historia é também diferente da historia do homem, é uma historia natural; não é uma historia individual, é o futuro de um tipo, de um ser coletivo.

Passado e futuro encontram-se e misturam-se num presente mal definido.
A natureza é aquilo em que estamos, é mistura.